Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão Polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que São Basílio, e Santo Ambrósio. O Polvo com aquele seu capelo na cabeça parece um Monge, com aqueles seus raios estendidos, parece uma Estrela, com aquele não ter osso, nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja Latina, e Grega, que o dito Polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do Polvo primeiramente em se vestir, ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores, a que está pegado. As cores, que no Camaleão são gala, no Polvo são malícia; as figuras, que em Proteu1 são fábula, no Polvo são verdade, e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo; e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe inocente da traição vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas? Não fizera mais; porque nem fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros O prenderam: o Polvo é o que abraça, e mais o que prende. Judas com os braços fez o sinal, e o Polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante: traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O Polvo escurecendo-se a si tira a vista aos outros, e a primeira traição, e roubo, que faz, é à luz, para que não distinga as cores. Vê, Peixe aleivoso, e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor.
Oh que excesso tão afrontoso, e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro, e tão cristalino como o da Água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo Céu. Lá disse o Profeta por encarecimento que «nas nuvens do ar até a água é escura»: Tenebrosa aqua in nubibus aeris [Sl 17, 12]. E disse nomeadamente «nas nuvens do ar», para atribuir a escuridade ao outro elemento, e não à água, a qual em seu próprio elemento sempre é clara, diáfana, e transparente, em que nada se pode ocultar, encobrir, nem dissimular. E que neste mesmo elemento se crie, se conserve, e se exercite com tanto dano do bem público um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso, e tão conhecidamente traidor?
Padre António Vieira, «Sermão de Santo António», in José Eduardo Franco e Pedro Calafate (dir.), Obra completa, tomo II, volume X